…porque você tomou todo o vento das minhas velas
(cause you have taken all the wind from my sails)
Essa frase é de uma das canções que tocam no filme Mesmo se nada der certo. Precisamos pensar um pouquinho sobre isso, concordam?
Conheçam Greta e Dave. Eles são da Inglaterra e estão chegando em Nova York porque o Dave (interpretado pelo cantor da banda Maroon 5) começou a fazer muito sucesso de repente. Greta trancou sua faculdade e veio acompanhá-lo nessa mudança de vida. Ela é compositora, canta bem, mas nunca teve o sonho de ser uma artista profissional, que fique bem claro.
Em pouquíssimo tempo percebemos que Dave está deslumbrado pelo universo do sucesso e se envolve em uma aventura amorosa com uma jovem da produtora musical que o contratou. Greta descobre isso ao ouvir uma música que ele fez para essa jovem. Essa cena, por sinal, é bastante comovente. Ele está lhe mostrando sua nova composição e aos poucos, juntando melodia e letra, ela vai percebendo que foi traída e todo o seu processo de reconhecimento dessa nova realidade se dá apenas por seu olhar, sem nenhuma palavra. Dave fica surpreso por ela ter conseguido descobrir isso apenas ao ouvir uma música, mas não nega o fato e lhe diz que isso é algo que ele precisa viver.
Greta estaria sozinha em uma megalópole senão fosse por um velho amigo que há anos tenta a vida de músico independente em Nova York, ao qual ela recorre e aí começa sua aventura pessoal. Greta é descoberta por um produtor que propõe que eles gravem um álbum em vários lugares da cidade. Vocês precisam ver como são poéticas as canções e como é bonito ver a música dando vida a uma cidade, ao mesmo tempo em que os sons de rua, de gente, de coisas acontecendo é que dão vida ao projeto deles.
Até aí tudo bem.
Mas Greta revê Dave, em uma cerimônia em que ele recebeu um prêmio, e se confronta com uma dúvida: ela não o conhecia realmente bem, mesmo que eles tenham namorado por cinco anos, ou então ele mudou totalmente depois do sucesso. Isso porque no discurso ele diz que aquele prêmio era seu sonho, que suas palavras de agradecimento tinham sido ensaiadas por anos com vidros de shampoo e vemos Greta dizer a si mesma: mas nós nunca tivemos esses sonhos!
Não temos como saber se Dave tinha um sonho de fama ou não e isso não vem ao caso. Mas podemos olhar para essa personagem feminina e aprender um pouco sobre relacionamentos.
Seus sonhos e os do namorado estavam tão misturados durante tanto tempo que, muito provavelmente, diversas projeções foram feitas por ela. Será que não foram essas projeções que a impediram de perceber as mudanças que ele foi tendo, os sinais de que aquela vida glamourosa estava sim sendo muito importante para ele?
De toda forma, algo problemático na frase com que comecei este texto é a culpabilização que Greta deposita em Dave. Como assim ela deixou que alguém tivesse esse poder sobre ela?! Isso não é pouca coisa, vejam bem: você tomou todo o vento das minhas velas. Então… Ela está à deriva porque outra pessoa teve o poder de fazê-la perder sua capacidade de seguir adiante, de ter motivação interna para se reconstruir por conta própria. Dave tem uma parcela de culpa? Sim, ele foi desleal e a colocou num lugar de inferioridade, mas foi ela quem lhe permitiu ter essa supremacia sobre si mesma, percebem?
Claro que no filme, exatamente por ser uma ficção, Greta se recupera bem rápido para que a trama entre na parte de superação que deve ser contada. Então ela consegue apostar nos seus sonhos pessoais e se mantém bastante firme sobre o que quer ou não com a produção do seu disco, faz novos amigos, retoma sua capacidade de ver a poesia da Vida. Contudo, na frase que destaquei e em sua postura inicial, nós a vemos ser submissa, seguindo o namorado como se ele fosse o centro do seu mundo, esquecendo de si mesma.
Precisamos nos apaixonar e por várias vezes fazer concessões para que um relacionamento funcione, mas não podemos fazer isso com os olhos fechados. Uma relação deveria ser uma união entre o seu mundo e o do outro, não uma sobreposição de ideais, valores, sonhos. Claro que esse equilíbrio exige bastante esforço de ambas as partes, muita conversa, ponderação e tolerância. Mas nada disso irá funcionar sem autoconhecimento. Como você vai saber se está deixando o outro dominar sua vida e o seu destino se você nem mesmo sabe para onde gostaria de ir? Como consultará sua bússola interna, para saber se a direção desse relacionamento se encaixa com suas necessidades pessoais, se essa bússola está quebrada ou você nem mesmo sabe como acessá-la?
Entendem a complexidade dessa questão?
Se alguém me pergunta o que pode fazer para um relacionamento dar certo, como psicóloga eu só posso perguntar: você se conhece o suficiente para dividir sua vida com alguém? Porque se a resposta for não, então, o primeiro passo é investir em si mesmo, incluir práticas como a meditação, escrita, auto-observação e psicoterapia, se for o caso.
Se a resposta for: sim, eu me conheço o suficiente. Minha pergunta seguinte será: e você se ama o bastante? Sabe cuidar de si mesmo, ser generoso, cuidadoso e, o mais importante, você sabe se respeitar? Se queremos incluir alguém em nossas vidas e dela receber amor, que este amor não seja para suprir aquele com o qual nos faltamos, pois isso seria exigir dela uma missão fadada ao fracasso. Mas vejam, amor próprio, autocuidado, autoconhecimento não são ideais que podem ser atingidos em absoluto, não estou falando de um padrão a ser alcançado e nunca mais perdido. É um caminho que sempre terá que ser reforçado, mas uma coisa é querer que alguém caminhe ao nosso lado quando não demos passo algum nessa estrada e outra bem diferente é aceitar companhia quando já andamos um bocado.
Porque um relacionamento não é apenas deixar que alguém se aventure por nossa estrada, é também adentrar o caminho do outro e, em grande parte, unir dois caminhos individuais em uma direção comum. Essa missão não tem nada de banal e não precisa ser assustadora, dolorosa ou parecer impossível. Só precisamos de atenção, disposição e muito amor para não darmos a ninguém o poder de controlar os ventos da nossa navegação interna.
Neste filme nós vemos Greta trilhar a jornada de retomar sua autonomia e não por acaso, nas cenas finais, ela está andando de bicicleta sozinha, sorrindo, depois de tomar uma decisão muito importante sobre sua carreira, seu relacionamento, sobre si mesma. Aquele sorriso representa seu reencontro com sua bússola interna, representa também a verdade de que depende apenas de nós o controle de nossas vidas.
Ficha Técnica
Begin Again (2013)
Direção: John Carney
Atores: Keira Knightley, Mark Ruffalo, Adam Levine, Catherine Keener, Hailee Steinfeld.